O DIA EM QUE (QUASE) MATAMOS DEUS

Desde o iluminismo, a racionalidade tem nos cobrado um alto preço, ao mesmo tempo em que foi uma das alavancas para o avanço da ciência e do aparecimento de novas tecnologias. Estas, no entanto, que deveriam vir para o bem, foram usadas em muitos outros contextos, como o Holocausto promovido por Hitler, exterminando seis milhões de judeus. E nas máquinas de guerra, que ficaram a cada dia mais sofisticadas e mais destrutivas.

O iluminismo começou, também, a contrapor fé contra ciência. A alegação de que o que não pode ser empiricamente comprovado não é verdadeiro, em uma racionalização que Descartes, o desenvolvedor do método cientifico, achava que nos levaria a explicar tudo, comprovando, cientificamente, a inexistência de deus – com minúscula de propósito. A modernidade chegou e passou e graça  aos movimentos da ciência quase que matamos Deus. Afinal, nenhum experimento ou teoria pode comprovar a sua existência e se isso ocorre é porque, no entender dos que defendem este ponto de vista, ele não existe.

Racionalizando Deus, ficamos cada vez mais próximos dele, transformando-o no nosso semelhante, no resolvedor de problemas, em um deus que é quase que pessoal.  Perdemos, como muito bem lembra Karen Armstrong em Em Defesa de Deus, o conceito do inefável, do metafísico, de um ente que não pode ser explicado, nem definido, pois qualquer explicação ou definição é parcial, incapaz de transmitir a imagem do todo. Deus é uma impossibilidade linguística, feito para ser sentido, não racionalizado e explicado.

Não sou, nem de longe, um especialista no assunto. Tampouco não sou religioso, no sentido de quem frequenta uma igreja com regularidade. Isso não quer dizer que não tenho fé, que não acredite em Deus. O que passou a me incomodar, desde há muito tempo, foram os rituais vazios, apenas palavras para designar algo que não deveria ser designado. Fui, no final, desconstruído, perdendo a persona religiosa e assumindo uma de cético em relação à religião cristã e seus rituais, mas não à própria fé.

Por isso é que fiquei tocado com o livro de Karen, com a argumentação que ela desenvolve, com a visão pluralista que nos dá, não se restringindo ao Deus cristão, mas levando em consideração as outras crenças e defendendo – o que também defendo – a diversidade, o entendimento, a compaixão e um olhar diferente para o que chamamos de Deus, fazendo com que ele volte a fazer parte de nossas vidas, de ser uma presença no universo. Como ela bem lembra, Buda já dizia que a vida é um sofrimento. E neste sofrimento, o inefável pode nos ajudar.

O livro, no final, me trouxe o reconhecimento de uma posição que, intimamente, defendia, mas que não expressara, ainda. Sobretudo, me fez ver que a crença não é incompatível com a ciência e tampouco com a razão, pois são coisas diferentes, não se podendo julgar uma pelos parâmetros da outra. E, por fim, me deu a certeza que não é o ritual, feito de forma pública, o mais importante na hora em que consideramos o conceito de inefável. O que vale é o reflexo em nós, individualmente, o deslumbramento que nos causa uma boa ação, a compreensão do outro, a aceitação da diversidade.

Karen nos lembra de coisas simples que esquecemos. De olhar para o lado e ver o sofrimento. De ter ciência das dificuldades da vida. De apreciar uma boa música, uma obra de arte. De fazer uma boa ação e olhar para ela não como o pagamento de algo, mas uma iniciativa espontânea, feita em favor de alguém, que dela precisa. Deus é intrínseco ao homem, fazendo parte de tudo que ele realiza, do que sente. É um reconhecimento interior, mas reflete no que fazemos  no exterior, apontando-nos caminhos éticos que, de outra forma, não teríamos.

Por tudo isso, se um dia quase matamos Deus, não conseguimos consumar a morte. Ele está vivo e foi mantido assim não pelos rituais em si, mas pela crença de que é algo inerente ao ser humano, um sentimento interno, que não se explica, mas que está presente em todas as horas da nossa vida.

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